Almas danificadas
um mini conto existencialista
Na sala de estar abarrotada e sufocante de uma casa que não lhes pertencia, dois espíritos atormentados habitavam o mesmo salão decadente, separados por uma distância que parecia medida com a exatidão de um agrimensor. Ela e ele-- almas supérfluas que nem mesmo Turguêniev ousaria inventar, pois a realidade de sua insignificância transcendia os limites da ficção mais pessimista. Ambos carregavam aquela melancolia peculiar. Um silêncio duplo e pesado pairava no ar, não exatamente por vacuidade, e sim por um excesso de significado não-dito -- cada partícula de ar carregava o peso de mundos interiores inexprimíveis, de humilhações íntimas ruminadas até à exaustão.
Ela, criatura de intelecto aguçado mas espírito fragmentado, possuía a desventura de compreender com tribulação patológica sua própria mediocridade -- condenada à lucidez implacável de quem decifrou demasiado cedo o enigma banal de sua própria existência. Seus olhos, carregados da mesma melancolia que outrora habitara o olhar de Akaki Akakiévich antes de sua derradeira humilhação, refletiam a amarga consciência de pertencer àquela categoria de seres que Lermontov classificaria como "heróis do nosso tempo" -- se é que a mediocridade pode aspirar ao heroísmo, ainda que trágico.
Ele, por sua vez, exibia aquela degeneração moral peculiar aos protagonistas de Gógol -- não a corrupção grandiosa dos grandes canalhas, mas a deterioração mesquinha dos pequenos homens que descobrem, para seu horror infinito, que nem sequer possuem magnitude suficiente para o pecado verdadeiro. Era como se Oblómov houvesse sido despojado até mesmo de sua preguiça aristocrática, restando apenas a casca oca de uma personalidade que jamais chegara a se formar completamente.
Seus olhares cruzaram-se, brevemente, por não mais que três segundos. Não era aversão ou desinteresse que os fazia desviar as pupilas para o chão encerado; era, sim, o perigo iminente de um reconhecimento mútuo demasiado íntimo, quase brutal em sua veracidade. Havia naquele olhar fugidio a sombra de uma familiaridade ameaçadora, como se ambos soubessem, com a clareza de um infortúnio, tudo sobre o abismo de insignificância e complexo de inferioridade que cada um carregava dentro de si.
Longos minutos transcorreram em contemplação mútua de suas respectivas mediocridades. Havia entre eles aquela cumplicidade lúgubre que une os fracassados conscientes de seu fracasso -- como se compartilhassem uma ignomínia privada que nem mesmo os confessores mais indulgentes ousariam absolver
-- Você também se sente… um intruso aqui? -- perguntou ele, com uma voz tão baixa e apagada que parecia menos pronunciada do que exalada, o subproduto audível de um pensamento que se envergonhava de sua própria existência.
-- É o meu estado natural -- respondeu ela, com a perturbadora estranheza de ouvir sua própria convicção de exílio existencial ecoar por outra boca, confirmando-lhe que sua miséria, afinal, não era única, mas partilhada -- o que, de algum modo impiedoso, era ainda mais deprimente.
O diálogo não prosperava. Entre cada troca de palavras, instalavam-se pausas longas e densas, intervalos de silêncio que seriam um suplício para qualquer outro, mas que para eles soavam como um alívio familiar. Era como se o não-dito entre ambos constituísse a única linguagem verdadeira, um idioma de fracassos e hesitações que ambos dominavam com a maestria de quem nunca praticou outro.
-- O problema reside em que, contra toda a razão, anseio por proximidade -- confessou ele, fitando uma mancha de umidade no tapete como se nela estivesse a chave de todos os seus fracassos --, mas, uma vez alcançada, sinto um impulso irreprimível de fugir, com a mesma natureza de um rato assustado de volta para a sua toca.
Ela permitiu que um sorriso amargo e quase imperceptível lhe contraísse os lábios: -- Como se cada passo em direção ao outro fosse, simultaneamente, um ensaio mental para a retirada estratégica. Um cálculo de perdas e danos antecipado.
Por longos minutos, nenhum deles proferiu mais palavra alguma. A mera presença física do outro era um paradoxo: suficiente e, ao mesmo tempo, um fardo. Não havia entre eles promessas vãs de amizade, nem a ânsia desesperada dos que buscam se agarrar a qualquer tábua de salvação. Apenas repousavam naquele conforto estranho e melancólico de saber que, talvez pela primeira vez, não eram mais as criaturas mais pateticamente sós do planeta. Havia, naquele instante fugaz, uma comunhão de almas estranhas -- inferiores, sim, mas inferiores juntas.
O silêncio persistia, mas não mais como uma carga. Adquirira a qualidade de um acordo tácito. Estar diante daquela outra existência que não exigia explicações, que não cobrava entusiasmo artificial, era como encontrar um espelho que, em vez de refletir a própria inadequação, simplesmente a aceitava, sem julgamento. O outro não tentava preencher os vazios -- possuía a rara e amarga sabedoria de simplesmente habitá-los, honrando seus contornos vazios com uma respeitosa dignidade de derrotado.
Ela interrogou-se, num lampejo interior, se aquilo seria o que o mundo comum, tolo e otimista, chama de "conexão". Mas imediatamente retificou o pensamento com o cinismo que a habitava: não, era antes o encontro de dois desertos imensos, que se reconheciam mutuamente como terras igualmente áridas e inóspitas.
-- Sabe o que é verdadeiramente curioso? -- sua voz rompeu a pausa, carregada de uma introspecção amargada pelo tempo. -- Passamos nossa existência inteira acreditando que a solidão constitui uma falha de carácter, um pecado social, quando talvez seja simplesmente a única condição sensata para uma criatura que pensa.
Ela riu minimamente, um som surpreendente que lhe saiu como um suspiro breve e amargo. -- Ou quiçá seja uma falha tão meticulosamente costurada na trama de nossa alma que já se transmutou na única identidade que nos foi concedida.
Ele não rebateu. Apenas inclinou a cabeça num aceno grave e cansado, à mesma maneira de quem reconhece uma verdade derrotista com a qual já fez as pazes há muito tempo.
E então, num impulso que surpreendeu a si própria, brotou-lhe a pergunta que jamais ousara formular a outro ser humano, por medo da resposta ou, pior, por medo de não haver resposta:
-- Crês que seja possível… aprender a permanecer? Sem sentir a necessidade imperiosa de desaparecer após o contato, como se a própria presença fosse um incômodo?
O outro tardou em responder, como se ponderasse o fardo da honestidade que a pergunta exigia. E quando o fez, foi com aquela candura brutal que apenas os condenados à mesma sentença existencial podem permitir-se:
-- Não sei. E desconfio de quem afirma saber. Mas conjecturo que a tentativa se torne menos… humilhante… quando realizada com alguém que compreende, nas próprias entranhas, o impulso primordial de evaporar-se. Alguém que não espere milagres.
Subitamente, ela percebeu a genialidade trágica daquela situação: não havia promessas. Não se fariam juras, não se trocariam garantias de felicidade futura. Restava apenas a sensação raríssima de que, por aqueles minutos efêmeros, o fardo de ser "a criatura mais só e inadequada do planeta" havia sido dividido em duas metades -- e, por alguma ironia do destino, tornara-se um peso mais leve, por ser partilhado.
Permaneciam assim, lado a lado, dois náufragos na mesma jangada, sem planos de chegar a qualquer costa. Era singular como a ausência total de expectativas podia oferecer mais consolo do que as mais eloquentes promessas. Nenhum dos dois se empenhava em preencher o silêncio com frivolidades baratas; o silêncio em si havia se tornado sua única língua verdadeira.
Ele extraiu do bolso do casaco surrado um caderno diminuto, gasto pelas bordas. Abriu-o numa página amarelada como todas as outras e inscreveu, com letra miúda e cuidadosa, uma única sentença: "Não precisamos nos curar -- apenas nos reconhecer como incuráveis". Deslizou o caderno em sua direção com um movimento solene, como se assinasse um pacto de não-agressão mútua e de compreensão da mútua fraqueza.
Ela leu e experimentou uma estranha familiaridade, como se aquelas palavras houvessem nascido em suas próprias entranhas, mas necessitassem de outra mão, igualmente trémula, para ganhar materialidade gráfica.
-- Creio que seja precisamente isso -- murmurou, devolvendo o caderno com igual solenidade. -- Não se trata de curar a solidão, mas de não piorá-la um no outro.
Ele sorriu, um sorriso mínimo, quase imperceptível, porém autêntico como apenas a aceitação da desgraça pode ser. Nenhum dos dois alimentava ilusões sobre finais redentores. Mas existia ali, naquele espaço entre-silêncios, uma espécie de trégua existencial, uma suspensão momentânea do exílio perpétuo.
E quando sobreveio o momento da partida, não houve abraço, não houve aperto de mão. Apenas um aceno discreto e um desvio de olhar, entre cúmplices que reconhecem mutuamente sua compartilhada condição de párias. Cada qual seguiu em direção oposta, carregando consigo a mesma solidão de outrora -- apenas que, desta feita, portando a incontestável e amarga prova de que ela não era uma invenção exclusiva de sua psique.
No íntimo, ambos sabiam: quiçá jamais se reencontrariam. Mas igualmente compreendiam, com a clareza dos que não esperam nada da vida, que não era necessário. O mero fato de existir outro ser, em algum lugar do mundo, que compartilhava de seu exílio interior e de sua autoaversão, já bastava para demolir a solidão do mito de serem "os únicos" monstros de inadequação.
E isso, na sua economia miserável de esperança, constituía uma forma de companhia. Melancólica e profundamente humana.




que escrita impecável! parabéns, isso é uma obra de arte!!!!! muito muito humano