Não, eu não peço perdão por odiar. Nem almejo tal indulgência.
Um manifesto contra a paz interior
Antes de qualquer deliberação moral, quero deixar claro: odeio com plena lucidez, com a consciência crua de quem já desceu às entranhas do próprio sentir.
Sei o que carrego, sei de onde brota, e — talvez o mais imperdoável de tudo — sei que não quero ser redimida.
Sim, eu odeio.
Mas não com aquele ódio vulgar que se esparrama em buzinas ou em comentários histéricos de redes sociais.
O meu ódio é sutil como uma lâmina polida.
Ele não grita. Ele observa. Respira comigo. Aprende a minha sintaxe, mimetiza meu silêncio, instala-se nas fissuras do peito como um inquilino que jamais pretende partir.
E não — não me envergonho.
Há quem levante bandeiras em nome do amor.
Eu levanto, com igual firmeza, a bandeira da clareza.
Há uma espécie de dignidade no ódio assumido — uma altivez lúcida que o amor, em sua desordem, às vezes não permite.
Costuma-se odiar aquilo que, em algum momento, tocou a alma.
O que se quis amar, mas não se pôde.
O que atravessou a fronteira da racionalidade e cravou os dentes em algum ponto vulnerável da memória.
O ódio exige vínculo. Exige memória.
Não se odeia o neutro. O indiferente não merece verbo.
O verdadeiro ódio é uma forma de luto ativo — uma recusa em esquecer.
Espinosa, esse analista das paixões, dizia que o ódio é uma tristeza com causa.
E talvez seja exatamente isso: uma dor que já nomeou seu algoz.
Mas ele advertia que o ódio nos afasta da razão.
Sim, é possível.
Mas e se for justamente essa ruptura que nos liberta?
Quem foi que decidiu que a razão era a morada da salvação?
Nietzsche, com seu orgulho de leão ferido, atribuía o ódio aos fracos — ressentimento dos impotentes.
E, ainda assim, ele odiava.
Com todas as letras.
Odiava os moralistas domesticados, os castos fingidos, os mansos fabricados.
Seu ódio era tão fino quanto sua retórica, e sua escrita transbordava veneno sob medida.
Talvez o que ele realmente desprezasse fosse a covardia de quem odeia sem coragem — aquele que disfarça rancor com piedade.
Sartre foi mais honesto: dizia que odiar é afirmar-se contra o outro.
“Eu te odeio porque você me limita.”
Sim. Porque o outro impõe contorno, nos delimita, nos denuncia.
O ódio, então, surge como um último gesto de liberdade:
"Eu me recuso a ser moldada pelo seu reflexo."
É a recusa em aceitar o papel imposto — de mártir, de boneca, de boa menina.
Schopenhauer, sempre niilista, via no ódio o eco de uma vontade frustrada.
Desejei — e não tive. Logo, odeio.
E ainda que isso pareça pueril, não há nada mais adulto do que encarar a falta sem anestesia.
O ódio, nesse contexto, é memória viva.
É cicatriz que lateja.
É um tribunal interno que se recusa a arquivar o processo.
Às vezes me pergunto: será que o ódio é amor que apodreceu?
Talvez.
Porque só se odeia o que já importou — e há, nesse ódio calado, uma espécie de sacralidade ferida.
Não é sede de vingança.
É apenas a recusa de abrir o peito mais uma vez, de ajoelhar-se pedindo gentileza.
É a dignidade dizendo “chega”.
Alguns não odeiam por maldade — mas por exaustão.
Porque ainda doem.
Porque o corpo aprendeu a temer até o afago, e se retrai instintivamente diante de qualquer aproximação.
Odeiam como quem ergue muros não para atacar, mas para não ruir mais uma vez.
O ódio, assim, se torna menos uma arma e mais uma armadura.
E eu?
Eu não escrevo por orgulho, mas por cansaço.
Cansaço de me editar, de suavizar a bile com eufemismos, de chamar de “mágoa” o que é repulsa, de fingir que estou em “processo” quando na verdade só estou enojada.
Escrevo porque não há plateia.
E porque talvez, em algum canto do mundo, alguém também odeie em silêncio — e precise saber que não enlouqueceu.
Dizem que o mal nasce do ódio.
Mas eu arrisco dizer: o mal genuíno nasce da indiferença.
O ódio, ao menos, reconhece. Aponta. Recorda.
Diz: “Você me feriu. E eu ainda estou aqui.”
Talvez não seja nem mesmo ódio.
Talvez seja apenas amor não correspondido em estado terminal.
Ou uma forma de dignidade que, ferida, aprendeu a morder.
Mas enquanto não inventarem outro nome, sigo chamando de ódio.
E por ora, é ele que me impede de desaparecer.
É ele que me mantém de pé.
Eu também odeio em silêncio.
Obrigada por traduzir esse ódio que eu sinto, que era um pouco incompreensível até pra mim até agora. É um consolo diante de todas as pessoas que imploram para que eu perdoe alguém tão repulsivo como um amigo que me traiu, e o pior: não sentiu nada quando me feriu.
Minha pensadora preferida.... Vovô te AMA.