Náusea e Clareira
Em meio a psicose e o excesso de ser
Há uma fronteira sutil (e, por vezes, indistinta) entre o que chamamos de consciência e o que tememos como loucura. Mas para aqueles que habitam intensamente o próprio pensamento, essa linha não é apenas tênue: é volátil, permeável, ilusória. Muitas vezes, ela simplesmente não existe. Basta uma insônia prolongada, um pensamento não dissolvido, um silêncio que se arrasta além do tolerável— e a razão, até então altiva, cede espaço ao delírio.
Costuma-se observar os ditos "loucos" com um misto de compaixão e desdém, como se fossem falhas isoladas de um sistema perfeitamente ajustado. Mas e se o erro estiver precisamente no próprio sistema? E se esses que desmoronaram não forem aberrações, mas mártires involuntários de uma consciência demasiadamente desperta? Talvez não tenham sucumbido por fraqueza, porém por ousadia. Foram fundo demais, pensaram além do permitido, sentiram acima do suportável. Viram o que não se pode ver impunemente… E ninguém retorna incólume de tal visão.
Pois a verdade, a verdade em seu estado bruto, despida de ornamentos, não é compassiva. Não é bela, sequer hospitaleira. É fria, implacável, indiferente. A natureza não conhece misericórdia: ela opera por algoritmos calados, por leis insensíveis, por lógicas que não se dobram ao apelo humano. Tudo morre. Tudo se desfaz. Tudo é consumido em uma ordem que não pede licença— apenas segue.
Mas tente insinuar isso numa conversa banal. Tente dizer, com serenidade, que talvez os chamados loucos não sejam menos conscientes, mas excessivamente lúcidos. Que o que chamamos de delusão pode ser o ápice da percepção. Que, talvez, a sanidade seja um pacto coletivo de negação. Eles rirão. Recuarão. Sugerirão que você respire, que veja o pôr do sol, que se distraia. O que não compreendem é que a distração, para alguns, é uma violência. Porque uma vez desvelado o maquinário do mundo (suas engrenagens cegas, seus ciclos indiferentes), é impossível fingir que não se viu.
E não, não se trata de glorificar a psicose. Trata-se apenas de reconhecer uma possibilidade incômoda: a de que certas mentes colapsam não por falha, mas por excesso de lucidez. Por uma busca radical por sentido em um mundo que sobrevive de evasivas. Talvez a sanidade seja apenas uma ignorância curada com distrações.
E a loucura, quem sabe, o último refúgio dos que ousaram saber demais.
Há uma espécie de náusea que não vem do estômago, mas do âmago. Uma aversão aguda não à forma, mas ao vazio por trás dela. A superficialidade (esse modo anestesiado de viver, esse pacto coletivo de “não ver”) não me repulsa por sua estética simplista, porém por sua covardia intrínseca. Detesto os que dançam no ritmo previsível de uma comédia romântica desastrosa, onde conflitos se dissolvem em cafés mornos, dates reciclados e legendas em inglês mal traduzido. E detesto ainda mais quando esses corpos sorridentes e domesticados não simpatizam comigo.
E quase nunca simpatizam.
Talvez minha presença irrite porque denuncia, mesmo em silêncio, a profundidade que tanto evitam. Porventura, sem que eu diga uma palavra, minha existência seja uma espécie de espelho incômodo; daqueles que não embelezam, no entanto revelam. E o que eles veem, ou sentem, não é agradável. É denso, ambíguo, não domesticável. E então se afastam, como se fugissem de um vírus existencial.
É aí que meu traço mais sombrio emerge: um orgulho sensível demais para aceitar a rejeição dos que vivem de frases prontas e stories de academia. Há algo de imperdoável em ser descartada por aqueles que nunca ousaram sequer pensar fora do algoritmo. Eu, que sou feita de interrogações e silêncios carregados, me vejo recusada por quem se alimenta de slogans afetivos e dopamina instantânea. E isso me tortura. Porque é como se me dissessem: “Você sente demais, pensa demais, é demais— e por isso, não cabe no mundo confortável que criamos.”
E em resposta, desejo, com a intensidade de quem já viu o fundo, que esse mundo desabe. Que a estrutura plástica que sustenta esses sorrisos falsificados colapse sob o peso do próprio vazio. Porque, no fundo, eu ainda acredito: não sou eu que estou errada. É o mundo que está anestesiado demais para suportar quem sente com o volume no máximo.
Mas (e aqui confesso sem máscara) há uma inveja taciturna nisso tudo.
Não invejo o conteúdo vazio, mas a leveza com que transitam nele. Eles dormem bem. Eu, por outro lado, insisto em decifrar o universo às três da manhã, como se alguma resposta se escondesse entre as dobras do caos. Eles vivem. Eu analiso a vida até que ela perca o gosto.
Pensar demais não é virtude. É um vício requintado. Um dom envenenado de perceber o que há por trás do teatro, e não conseguir mais bater palmas. Você vê o palco, os fios, os bastidores, os truques de iluminação. E então, como a criança que descobre que o mágico mente, algo dentro de você morre. O deslumbramento se dissolve, e a lucidez se torna um fardo.
Talvez a loucura não seja o oposto da razão. Eventualmente é apenas seu ponto de saturação. Um excesso de claridade em olhos humanos demais.
Afinal, ninguém deveria olhar diretamente para o sol. Não por muito tempo. Porque o sol queima. Cega. Corrói. E a verdade, quando despida de todas as camadas de ilusão, é como ele: arde, incomoda, esvazia. Todos dizem querer conhecê-la, mas ninguém, absolutamente ninguém, suporta sua presença por muito tempo. Nem mesmo os fortes. Estes apenas aprendem a suportar a queimadura em silêncio.
E assim seguimos: de um lado a náusea da superfície e do outro, o declínio do profundo, entre a leveza ignorante dos que dormem em paz e a insônia abissal dos que ousaram ver demais.
Pensar dói como andar à chuva quando o vento cresce e parece que chove mais.
— Fernando Pessoa




acabei de chegar ao Substack e me deparo com um texto desses!
"é volátil, permeável, ilusória"
e o primor da forma ainda não se sobrepõe à primazia conteúdo.
nunca deixe de escrever, Isabelle!
“Talvez a sanidade seja apenas uma ignorância curada com distrações.”
Gostei ! E me identifiquei com a estética da sua página